terça-feira, 17 de agosto de 2010

As chaves da cidade - José Faria - Cônsul do Estado de Goiás

As chaves da cidade

José Faria

Cônsul Poetas del Mundo em Goiás

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Um ou outro carro subindo e outros descendo, irregularmente intercalados, pela avenida principal.

Boina para proteger a careca da ação dos raios solares do final de primavera, já com a quentura de verão.

Passos cadenciados, vem ele descendo, ombreando uma idade sexagenária.

Jota Efe é seu nome de guerra.

Atravessa o córrego na ponte pintada de cal, sinal de que a cidade vive clima de festa. Festa do aniversário.

Ele é o primeiro a chegar ao trevinho de acesso à cidade, a poucos metros depois do córrego.

Outras pessoas vêm chegando, algumas de carro, outras a pé.

O prefeito chega em sua camioneta cabine dupla.

Ao lado do prefeito a primeira dama e no banco de trás o vice prefeito e o secretário da administração.

O prefeito logo é rodeado por populares.

A princípio todos tranquilos.

Vez por outra os olhares se voltam para o outro lado do rio, na descida para a ponte que passa por cima da ilha.

Os olhares buscam avistar o ônibus que traz os convidados de honra, alguns vindos do estrangeiro: um da França, outro da Suécia e, do Chile, um chileno e uma colombiana há algum tempo residente em Santiago.

O chileno é o fundador do movimento que oportunizou o evento que os traz ao trevo da cidade. Com ele vem a embaixadora, residente no vizinho estado do Sul.

O chileno é o presidente mundial do Movimento e a embaixadora é a presidente internacional.

Na caravana vêm também alguns convidados especiais da capital do Estado. Entre eles presidentes, ex-presidentes de Academia de Letras, de Instituto Histórico e Geográfico, de União Brasileira de Escritores Estaduais e de Conselhos Estaduais de Cultura.

A caravana é ilustrada por representantes literários de diversos Estados do País.

A chave da cidade, aliás, as chaves da cidade, na camioneta do prefeito, aguardam a chegada do ônibus com os visitantes ilustres. Elas, as chaves, serão entregues aos convidados especiais, os estrangeiros e à embaixadora.

O sol castiga e, à medida em que o tempo passa, chega a sede.

Alguns procuram as sombras das poucas árvores nas margens do córrego.

O ônibus já atrasado.

A tranquilidade de início dá lugar à apreensão.

Jota Efe, coordenador do evento, tenta aparentar tranqüilidade, mas denuncia sua angústia ante a demora.

“E se houve algum problema de estrada?”

Prefere convencer-se de que tudo deve ter ocorrido dentro da normalidade.

A viagem da Capital até sua cidade é longa, atrasos são normais.

Afinal os atrasos já fazem parte da cultura nacional. Pontualidade é figura de retórica.

Muitos, já cansados da espera, retornam à cidade. Aliás, estavam ali por curiosidade, alguns para agradarem ao prefeito que pedira aos seus secretários que estimulassem os funcionários de suas pastas para marcarem presença na recepção aos escritores.

A previsão de chegada para as 17 horas não prejudicaria o trabalho nas repartições, que se fecham às cinco da tarde.

Embora o movimento literário da cidade tivesse início há mais de 30 anos, é a primeira vez que uma recepção dessa monta acontece.

Antes nenhum convidado de honra, nenhuma autoridade, política ou administrativa, ninguém teve a honra de receber as chaves da cidade.

O prefeito pretende inserir a cidade no mapa turístico do país e quer aproveitar o encontro dos escritores, brasileiros e estrangeiros, para comprovar sua intenção de resgatar a cultura literária na cidade.

O dinamismo cultural dos anos 70 e 80, diga-se de passagem, ficou, por muitos anos, adormecido.

Chegou a ressurreição.

Jota Efe caminha de um lado para outro, denunciando sua impaciência. Eis então que ouve um chamado:

-Jota Efe, faz o favor!

Volta-se em direção à voz.

Mestre Carlos, barbas brancas, longas, como uma figura de livro de história.

Jota Efe aproxima-se do velho amigo.

- O tempo passa, hein Jota?!

Mestre Carlos puxa conversa, fala de quando conheceu Jota Efe, um menino franzino, que morava em uma casinha de capim e pau-a-pique lá pra cima, na beira do córrego nas terras onde hoje fica o frigorífico. Na verdade, seria frigorífico, mas tornou-se uma charqueada.

- Você se lembra de quando era menino?

- Lembro sim, Mestre.

Mestre Carlos, voz marcada pelo tempo, compara com Jota Efe o ontem e o hoje.

- Que diferença, hein?!

- É mesmo. Quanta diferença!

Mestre Carlos em costumeiro bom humor, não afetado pelo transcorrer dos anos, ironiza com Jota Efe:

- Jota, dizem que os europeus que vieram para a América aprenderam com os índios a tomar banho diário. Será que ainda hoje eles lá têm resistência a banhos? Até porque, sendo a Europa terra de clima fresco, um banhozinho todo dia deve ser meio incômodo, não acha? Chato pra caramba, não acha?

- O senhor acha? – Devolve Jota Efe a pergunta.

Os dois sorriem e Mestre Carlos completa:

- Ainda bem que eles não estão aqui escutando, não é mesmo?!

- É verdade.

- O que você acha de fazer essa pergunta para eles?

-Nem pensar. – Conclui Jota Efe, com receio daquela conversa chegar até os europeus. E se assegura: mas o senhor não vai fazer essa pergunta a eles não, não é mesmo?

Novos risos, Jota Efe ri meio sem jeito, preocupado com a eventual irreverência de Mestre Carlos, que o tranquiliza:

- Pode ficar sossegado. Não vou falar nada não. Aliás, nem sei a língua deles. Como eu iria conversar com eles? Vou ficar que nem gato perto do peixinho no aquário: só olhando e, se eles sorrirem, vou sorrir também. Mesmo sem saber de que e nem porque.

Embora nenhum parentesco tivesse com os Borges ou os Guimarães, famílias que trazem o slogan de pioneiros da região e fundadores da cidade, Mestre Carlos viveu grande parte da história local. Mais que isso, participou dela. Professor particular na primeira metade do século passado, sem vínculo empregatício, não chegou a se aposentar. Hoje, com quase um século de vida, goza de benefício previdenciário por idade, não por tempo de serviço prestado.

O Mestre continua a falar mas Jota Efe, ao ver uma criança em idade escolar e maltrapilha que passa no desvio de pedestre que desce para a ponte, desliga-se de Mestre Carlos. Não mais o ouve. Enquanto acompanha a criança com o olhar, descambando-se para as proximidades de embocadura da ponte nova – a antiga fora demolida por causa do represamento do rio – desvia o olhar para a paisagem, percebe a falta da mata ciliar e volta-se para o seu tempo de criança. De quando seu avô, quase todas as semanas, pescava um dourado ou uma piracanjuba no rio. Hoje mal se pega mandi ou algum piau.

De regresso ao tempo, tempo de criança (há mais de meio século), mergulha-se no ontem. Final da década de 40.

Jota Efe mergulha-se em sua história.

Noite de lua clara. No gramado da frente da casa da avó, ao brincar de pique com primos e vizinhos, ganha de herança por toda a vida uma fratura no antebraço direito. Quantas e quantas noites indormidas, noites consequentes da violência, já naqueles tempos. Penicilina, unadina, estreptomicina, semanas, meses de martírio, como se tivesse que sofrer todas as dores da vida naquele único lapso do tempo.

Mal sabia ele por quantas provações ainda teria que passar. O antebraço necrosado deixou marca vitalícia. Decorrência do gesso mal colocado e antes do momento oportuno.

Sem médico, a cidade era servida por um farmacêutico prático.

Relembra-se, como se fosse hoje, de suas caminhadas da roça para a única escola da cidade. Aliás, de cidade só tinha o nome oficial, pois na prática era chamada de corrutela da Água Fria.

Jota Efe relembra-se de quando, na escola primária, ele vestia-se mal, tinha os materiais escolares dos mais baratos, sentia-se humilhado ante o exibicionismo dos “riquinhos” da cidade.

Gostaria de jogar bola com os colegas, mas acabava por ficar de fora. Não tinha lugar para ele no time. Ele, um menino da roça, não sabia jogar e os meninos da cidade o ignoravam.

Isso até que ele começasse a se destacar como aluno, apesar das péssimas condições financeiras. Revelou-se atuante, decorava e declamava poemas por recomendação da primeira professora, Leonor Severina, depois também com Ana Pereira. Ainda que a maioria dos meninos continuasse a ignorá-lo, pelo menos as meninas começam a prestar-lhe atenção. E algumas até se apresentam como amigas. Esboça um sorriso ao relembrar-se da menina mais bonita de sua turma, a Tomásia, quando veio correndo, parou em sua frente, deu-lhe um beijo no rosto e continuou a correr para junto de outras meninas, não antes de dizer “meu lindo!”. Por muito tempo Jota Efe comemorou o acontecido, na esperança da reincidência.

Com a venda das terras da família muda-se para a cidade em 1963. Foi então que ele, embora morando em uma das casas mais pobres da cidade (mas melhor que sua casa na roça), apesar de sua desprivilegiada condição financeira, integra-se na vida urbana.

Entra na aula de catequese das irmãs franciscanas da reconciliação, Maria e Lorêta, que vinham semanalmente da cidade vizinha e passavam pela balsa. Não tinha ponte no rio.

No curso com as irmãs integra a primeira turma de coroínhas do primeiro pároco da cidade, o Zé Maria, recém chegado da Espanha.

Imagina o padre de costas para os fiéis, celebrando a missa em latim: “Dominus Vobiscum”, dizia o padre ao virar-se para os fiéis, que nada entendiam do que o celebrante falava. As mulheres do Apostolado de Maria com véus pretos na cabeça, as moças “Irmãs de Filhas de Maria” com véus brancos, os homens do “Apostolado da Oração” com medalha do Sagrado Coração de Jesus pendurada ao peito, com fita vermelha..

Os coroinhas também nada entendiam da missa, repetiam com um latim decorado, feito papagaios: “Et cum spiritu tuo”.

Tempos mais tarde já não era mais coroinha, Jota Efe encontrou no “Manuel do Cristão” de sua mãe a tradução da missa para o Português e só então entendeu as expressões em latim: “O Senhor esteja convosco”, e a resposta “E com o teu espírito”.

De coroinha virou comentarista de missas, agora já em Português. Só parou quando se tornou professor, nomeado aos 15 anos de idade para lecionar na fazenda de um tio. Uma vez professor não parou mais. Lecionou até aposentar-se. Fez curso de aperfeiçoamento em outra cidade vizinha (na na do padre), começou o curso ginasial no recém criado ginásio de sua cidade. Foi então que o professor de redação percebeu em Jota Efe propensão para escritor. A redação “Canoeiro do Rio Claro” foi um verdadeiro conto, reconheceu o professor do ginásio. Foi o suficiente para tomar gosto e tornar-se escritor, a princípio com todas as limitações que a situação condicionava.

A arte de escrever foi aprimorada com leitura de bons autores e no contato com escritores em outras cidades da região e depois na Capital do Estado. Chegou a conquistar alguns prêmios literários e a publicar alguns livros,sem contar as mais de 100 antologias de que participou.

- Lá vem o ônibus”, “lá vem o ônibus descendo do outro lado do rio, já perto da ponte”. – Gritam alguns estudantes, curiosos para conhecer os visitantes ilustres. E Jota Efe acorda para a realidade.

Mestre Carlos levanta-se, não demonstra aborrecimento com o “apagar” de Jota Efe. Compreendeu que houvera provocado uma catarse do amigo mais jovem, mas também já grisalho em seus poucos cabelos que lhe restam.

Os anos e anos de dedicação de Jota Efe aos estudos e à escrita valeram-lhe o reconhecimento como escritor. Entretanto nada se podia comparar com a emoção de ser o coordenador do maior evento literário que sua região tivera em todos os tempos. Um dos grandes acontecimentos do Estado mais central do País.

Com o prefeito adianta-se das demais pessoas, enquanto o ônibus pára. Abre-se a porta e, um a um, desfilam os protagonistas do show antes os olhares curiosos de uns e de outros embevecidos, afeiçoados na arte literária. Afinal ali, como estrelas de um grande espetáculo, os escritores iriam receber chaves da cidade: uma das mãos do prefeito e a outra, do emocionado Jota Efe.

À noite será o início da parte literária das festividades do aniversario da cidade, com a instalação de uma secional de uma academia nacional e a abertura do I Encontro nacional dos Poetas no Estado. De permeio acontecerá a I Expolivros do interior do Estado.

Os evento hão de começar já previamente imortalizado com a entrega da chave da cidade

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