Tratado firmado no olhar
Carlos Lúcio Gontijo
No mês de outubro deste ano de 2010, presenteei minha neta com um periquito australiano, adestrando-o ao ponto de ele mais preferir o ombro humano que o poleiro da gaiola. Luara o batizou de Fernando, mas lhe colocou o apelido de Fefê, seu verdadeiro e afetivo nome.
Tudo corria bem até que um dia, quando minha esposa viajou a Santo Antônio do Monte, cidade localizada no Centro-oeste de Minas Gerais, Luara veio ficar comigo depois da aula pela manhã. Eu logo cuidei de retirar o pássaro da gaiola, a fim de que ele voasse para o ombro de minha neta, onde ficava a bicar-lhe os brincos e às vezes, levemente, as orelhas.
Como estava só em casa, tinha algumas tarefas a cumprir: lavar algumas vasilhas, tratar da cachorra Kika, aguar plantas. Então Luara, desceu toda festiva e contente para o primeiro andar, carregando com ela o Fefê, que cantava pousado em um de seus dedos. Ligou o computador e do terraço se podia ouvir sua alegria de criança invadindo todos os cômodos do apartamento em que eu e Nina moramos há mais de 25 anos, na cidade de Contagem.
De repente, sobreveio um profundo silêncio entrecortado pelos passos de Luara subindo as escadas aos prantos, com o Fefê na palma de suas mãos. O pássaro me foi apresentado gravemente ferido. Minha neta narrou-me que ele estava sobre a mesa do computador, voou e caiu de mau jeito. Claro que não deve ter sido apenas isso, mas não quis inquiri-la nem jogar sobre ela ônus de responsabilidade tão pesada ao seu coração infantil. Contudo, fiz questão de alertá-la em relação ao fato de que um ser vivo sempre tem que receber toda atenção, uma vez que não é um objeto passível de simples troca ou substituição por outro, bastando dinheiro e disposição para ir a estabelecimento comercial adquirir produto novo.
Minha neta chorava copiosamente, mas ainda alimentava esperanças de que o Fefê amanheceria recuperado. Entretanto, não deixei de lhe dizer que o problema de saúde dele era de difícil solução e que provavelmente morreria. Os soluços de minha neta e o sofrimento do pássaro rastejante me encheram de tristeza. Dessa forma, na condição de avô, eu me dispus a um consolo filosófico. Olha Luara, minha mãe Betty, sua bisavó, costumava aconselhar-nos que não devemos cair em pranto diante da morte de um animal de estimação, pois quando essa perda acontece é porque Deus passou em nossa casa disposto a levar alguém da família, um ente querido, para o seu Reino. Todavia, opta por levar, naquele momento, o animalzinho de estimação.
Luara ficou mais animada ao entender que era melhor ficar sem o Fefê, apesar de toda a dor que ardia em seu peito, do que assistir à morte de qualquer uma das pessoas às quais ama tão fortemente. Tomei a situação como um segredo e como tal não me sentia à vontade para revelá-la. Luara também se manteve em silêncio absoluto sobre o assunto. E como o Fefê ficava no apartamento em que moro, a mãe (minha filha Amanda) não se deu pela ausência do periquito. E só foi saber que o Fefê havia morrido muitos dias depois, quando o irmão (Lucas) cometeu-lhe a inconfidência.
Ao passo que meu filho contava o incidente à irmã, Luara me olhava docemente de soslaio. Estava ali firmada uma relação de confiança, um tratado de amizade que certamente nos acompanhará por toda a vida. Um conchavo natural, como existe entre céu e estrela, água e peixe, janela e paisagem, comemoração natalina e sonho de criança à espera do presente desejado no transcorrer de todo ano, porém capaz de se acomodar ou conter-se em qualquer gesto de carinho florescido sob o teto de um lar – simulacro de manjedoura, templo, altar e oração ao Criador, onde o dízimo se paga através do amor espontânea e fraternalmente concedido.
Carlos Lúcio Gontijo
Poeta, escritor e jornalista
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