segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

Delasnieve e a poesia do tempo - de Maria da Glória Sá Rosa


Delasnieve  e a poesia do tempo

“O tempo é minha matéria, o tempo presente, a vida presente,os homens presentes” Carlos Drummond de Andrade

      Afirma Marcel  Proust em sua obra “La recherche du temps perdu” que o tempo é a única coisa de que realmente dispomos.
      Tudo  se desgasta e passa .Tudo se dissolve,menos o tempo,    matéria prima da existência.
      Partindo do fascínio, do mistério, que o tempo exerce sobre a imaginação,Delasnieves Daspet construiu  uma poética baseada  na observação do  deslizar  dessas horas, a que chamamos vida.
      Como numa viagem,a história  inicia-se na infância.
      Bastou o  toque da varinha mágica para que a  memória, arquivo de lembranças, acionasse o ‘doce vento da tarde”  e fôssemos transportados em suas asas  ao incerto país dos rios sem fronteiras  de que nos fala   Rilke,onde é possível “sentir o cheiro do  amanhecer das campinas “ e encher  os olhos com as luzes do “mais belo por do sol”.
      Surgem ,dessa forma, versos banhados nas ondas do lirismo, da delicadeza, versos que respiram  a “liberdade do reino animal e vegetal em permanente cio.”
      Mulher de muitos talentos, Delasnieves descobriu na poesia a janela por onde a realidade escorre  para  inaugurar territórios mulltiplicadores de sonhos e visões de acontecimentos  que se sustentam  no ritmo dos versos.
     Imagens tornam-se múltiplas na  descrição “da luz rósea  da madrugada” ”no rumor das folhas secas” “no murmurar do Mato Grosso do Sul, que precisa ser ouvido   com os olhos “no chão e na alma” para o conhecimento de sua grandeza.
      A natureza é o grande ator de que se vale a autora  para clamar contra a destruição,porta-voz da resistência  representada pelo milagre das flores brotadas das cinzas  geradoras .
      Na utilização da teoria  das correpondências de Baudelaire, sensações de cor ,movimento  forma  e cheiro invadem os sentidos do leitor, no jogo de espelhos, gerador  da vida selvagem,  expressa na visão “das crianças azuis e das rosas suaves do Pantanal”.
      Pouco a pouco a autora assume os traços distintivos dos  animais e flores do Pantanal, abrigo certo dos momentos difíceis em que exibe a“pele curtida de sol” , encontra moradia “nas infindáveis planíces azuladas,  esquece o tempo e curte o prazer da solidão.”  
      Definindo-se como índio guaicuru, assume as qualidades desse guerreiro,lutador independente,síntese do brasileiro.Ao mesmo tempo faz o panegírico dos herois e revolta-se com a derrota  dos guatós ,nação nunca dominada “nem pela espada ou religião”
      Imagens brotam como na tela de um cinema,criando ritmo inusitado pela  repetição de sinestesias,antíteses e metáforas.Uma palavra puxa outra como símbolos de leveza, de maciez,do inominável difícil de ser atingido.
      Ao identificar-se com as forças da natureza, compõe o estatuto da realidade cultural de Mato Grosso do Sul,mosaico de forças de toda  ordem anunciadas nas vozes dos deuses gregos, que se associam em favor da liberdade de ser e de agir.
      Pã Che Tetã, Poesias reunidas de Delasneves Daspet,  muito mais que um hino à terra sul-mato-grossense é a revelação das qualidades poéticas de quem nasceu para o dever de transformar a palavra em  símbolo da voz que ficou calada na garganta , grito de coragem e expressão da liberdade. .
      Como  Drummond, ela fez do tempo exercício de análise da vida e dos homens que fizeram parte de sua convivência alargando os caminhos da existência.
Maria da  Glória Sá Rosa




Glorinha*
Maria da Gloria Sá Rosa – Um dos grandes nomes da cultura de Mato Grosso do Sul. Foi educadora, ativista de assuntos culturais, i Doutora Honoris Causa pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul – UFMS e membro da Academia Sul-Mato-Grossense de Letras.


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