- Literatura
- Sábado, 18 de fevereiro de 2012
- Jornal O
- http://www.oestadoms.com.br/flip/18-02-2012/p23b.
A Lírica de Delasnieve Daspet - Ensaio
de Helenice Maria Reis Rocha*
Pensando na possibilidade de configurar um conceito de lírica pós moderna ao sabor das mídias contemporâneas, detenho-me na poesia de Delasnieve, líder brasileira de Poetas del Mundo, poesia em trânsito na modernidade global num momento de desconstrução das lógicas discursivas hegemônicas e de babelização das estabilidades conceituais dos discursos canônicos.
Pensando na possibilidade de configurar um conceito de lírica pós moderna ao sabor das mídias contemporâneas, detenho-me na poesia de Delasnieve, líder brasileira de Poetas del Mundo, poesia em trânsito na modernidade global num momento de desconstrução das lógicas discursivas hegemônicas e de babelização das estabilidades conceituais dos discursos canônicos.
Se existe algo, em termos conceituais, que nos garante a possibilidade de definir algo como fenômeno de linguagem inscrito na compreensão de uma dicção lírica,o que seria esta dicção no bojo dos falares contemporâneos,da linguagem de massas , da secreta fabulação dos teóricos da academia é o que me cabe perguntar neste trabalho. Remeto-me a um verso de Safo,a grande voz feminina da lírica grega,sobre solidão e lua e aporto no seguinte verso...¨somente a Lua, indiferente, continuou iluminando a cidade escura pela tua ausência(Daspet,20,2003).
Safo, num momento de profunda solidão expressa a sua condição humana de criatura sem defesa diante do abandono (as ninfas se foram,o dia também) eterno abandono de toda criatura diante da realidade única: sou o único ser com o qual realmente estou neste momento a ausência. Delasnieviana se aproxima
da ausência do poema imortal de Safo, aquela que nos remete a nós mesmos.
A poética do desencanto que nos descentra da palavra de aprovação, seja da academia ou mesmo daquele discurso hegemônico que legitima, ou quem sabe, da benção do pai, fundamento, saber por excelência, ratificado pelo aristotélico verbo de identidade, e estabeleço a crise, o não lugar,a possibilidade da utopia ou da ausência total dela.
O Não LugarDicção migrante entre os saberes do mundo e a palavra. A dicção aparentemente simples, quase midiática (música sertaneja,hip hop) entremostra a inquietante decisão da palavra que afirmativa que diz do que sabe e a instigante fragilidade do non sense. Deixar de existir é impossível para o cantor sertanejo, uma vez que este não lugar exila o sujeito da identificação afetiva. Se o corte epistemológico que cinde os saberes do mundo com a emoção do poeta realiza esta desidentificação com o status hegemônico, tanto a hegemonia do discurso oficial, quanto a hegemonia do discurso da margem, na sua pluralidade, estamos diante da singularidade da linguagem poética, terra estranha, mundo insólito de selvagens, redutíveis apenas à beleza, por ela mesma, e à estranha humanidade da razura,da perda, de todos os perdidos no mundo e enclausurados na única realidade mesma do homem, o intangível da comunicabilidade através da palavra.
Novamente Lua e Desencanto
Encostada na janela senti a serenidade da noite
A Lua começava a surgir num suave prelúdio da
bela luz refletida na areia(Daspet,23,2003)
Novamente Lua e Desencanto
Encostada na janela senti a serenidade da noite
A Lua começava a surgir num suave prelúdio da
bela luz refletida na areia(Daspet,23,2003)
Retomando a sábia ironia de Ruth Silviano Brandão sobre uma certa idéia de logus, teia iluminadora da razão, invenção de homens, reivindico aqui o direito à sombra, à ambiguidade do inconsciente , à uma certa clandestinidade que esta poesia evoca. A lua refletida na areia é uma entreluz , não uma luz total ou a completa ausência delaArs Poética.
Em Um Ser Partido,vejamos:
O que pulsa em mim
Vê-se no espelho partido
Irrevogavelmente viva
Povoada de ausências...
O sangue segue seu caminho
E, torna-me uma mera sátira!
Uma sátira de involuntários movimentos(Daspet,90,2000)
Flor de Logus estilhaçando os recursos da linguagem pré socrática. O espelho partido , a recusa da identificação que legitima a autoridade, a presença, e que, no feminino, estabelece o caldo de rebeldia que reconduz dolorosamente à vidaDesidentificada e sóSem o shtablisment. Então, algo da ordem do indizível se instaura porque, aquele que deixa de existir, desiste de qualquer legitimação, o que é impossível para qualquer arte inscrita no escopo da ideologia, dos discursos hegemônicos...
Poeta trilhando o heróico caminho da lírica feminina pós moderna que estilhaça as dores clássicas da romântica Cecília Meireles e suas jovenzinhas torturadas, ou a contemplativa Henriqueta e seu sublime elogio da morte. Se todas as Mariazinhas foram educadas para a arte do encontro, Psafo, a três mila anos atrás já tinha desistido dele, assumindo a sua solidão diante da Lua, que nesta lírica não é a dos namorados. O desencanto desta dicção deságua no inusitado de
São Difíceis as Coisas que quero dizer
Só uma dicção lírica como esta daria lugar à arte do desencontro. Uma água que não sacia, parte de um esquecimento que não ousa ser esquecido. Saindo da lógica estabelecida do encontro feliz, do casamento com a eternidade, proponho aqui a seguinte reflexão Otávio Paz,em Os Filhos do Barro - nos diz da tradição da ruptura, ou seja:o esforço de romper com os parâmetros tradicionais da linguagem, nos joga na armadilha de transformar em tradição, a pretensão à subversão. Sem recorrência à nenhum dos recursos formais da recolocação matérica dos recursos da linguagem poética, propostos pelo formalismo e estruturalismo russo estaria aqui a arte poética fundamentalmente no modo de dizer. Advogo aqui a força do que se diz para além das possibilidades do dizível
Em Transpondo Barreiras,Delasnieve diz:
Vou trabalhar meus medos
o temor do desconhecido
De não mais existir
Do primitivo homo sapiens
ao que cheguei ser
Vou transpor minhas fronteiras(Daspet,88,2002)
O salto mortal da experiência primeva de existir à possibilidade da não existência, elide o sujeito, assunção que razura o estar no mundo em relação aos saberes, aos falares, aos discursos, tanto oficiais quanto não oficiais. Se não existo, caminho rumo a pátria incerta, socrática, daquilo que não sei. Triunfo sobre logus, afirmativo por excelência, mesmo quando nega. Crise, fenda, cisura que exila o sujeito da autoridade que vem de fora (do pai,dos discursos hegemônicos,das narcísicas tradições culturais de autoridade ou da dialética pretensão à ela).
A vida é um caminho
Reclamo a minha estrada
O reencontro comigo!(Daspet,20,2002)....
Retomando João Ribeiro em Páginas de Estética, números 45 e 63 numa reflexão de A.M.Teixeira....o aspecto essencial da beleza é não ser intelectualmente
compreendida e não conter um só elemento de inteligência ou razão. Pode ser explicada: podem-se perscrutar as leis secretas que a regem como todas as coisas; mas sentí-la não é matéria da ciência(...)A obra de arte precisa 'conviver' e 'con-criar' conosco. Para que haja mistério na obra literária ou plástica é mister que haja incompreensão, mas sem obscuridade; que a alma que as escute ou as sinta se embeveça e continue a cismar o sonho do poeta.....Cada um se perfaz e completa a sua impressão própria e pessoal. A verdadeira obra de arte é mais um estímulo....do que idéia.
Esta Lua que se recusa, tanto à obscuridade quanto à Luz plena se me afigura o lugar provocador da linguagem poética que se recusa à estabelecer-se, levando a produção de sentidos a migrar, junto com aquele que lê, tanto à possibilidade de criação quanto à de recriação.
Pensando na poesia de Delasnieve como quem frui um fenômeno de dicção que é parte da diáspora pós colonial (antes do 11 de setembro) é interessante
associar visões de lírica de três mil anos atrás com a contemporaneidade.
A simplicidade desta linguagem me remete à comunicabilidade midiática, à lírica de todos os tempos, ao que parece banal e é complexo. Se pensarmos que, em termos de lírica trovadoresca, passando por Camões(Lírica), que usa o modus operandi da redondilha, essencialmente popular, talvez tenhamos uma pista para compreender esta junção entre comunicabilidade imediata e complexidade, uma vez que a também aparente simplicidade de Safo atravessou três mil anos.
Esperou tanto um novo encontro
que a esperança se esvaiu
como um copo d'água
esquecido(Daspet,77,2001)
que a esperança se esvaiu
como um copo d'água
esquecido(Daspet,77,2001)
Só uma dicção lírica como esta daria lugar à arte do desencontro. Uma água que não sacia, parte de um esquecimento que não ousa ser esquecido. Saindo da lógica estabelecida do encontro feliz, do casamento com a eternidade, proponho aqui a seguinte reflexão Otávio Paz,em Os Filhos do Barro - nos diz da tradição da ruptura, ou seja:o esforço de romper com os parâmetros tradicionais da linguagem, nos joga na armadilha de transformar em tradição, a pretensão à subversão. Sem recorrência à nenhum dos recursos formais da recolocação matérica dos recursos da linguagem poética, propostos pelo formalismo e estruturalismo russo estaria aqui a arte poética fundamentalmente no modo de dizer. Advogo aqui a força do que se diz para além das possibilidades do dizível
Em Transpondo Barreiras,Delasnieve diz:
Vou trabalhar meus medos
o temor do desconhecido
De não mais existir
Do primitivo homo sapiens
ao que cheguei ser
Vou transpor minhas fronteiras(Daspet,88,2002)
O salto mortal da experiência primeva de existir à possibilidade da não existência, elide o sujeito, assunção que razura o estar no mundo em relação aos saberes, aos falares, aos discursos, tanto oficiais quanto não oficiais. Se não existo, caminho rumo a pátria incerta, socrática, daquilo que não sei. Triunfo sobre logus, afirmativo por excelência, mesmo quando nega. Crise, fenda, cisura que exila o sujeito da autoridade que vem de fora (do pai,dos discursos hegemônicos,das narcísicas tradições culturais de autoridade ou da dialética pretensão à ela).
Rebeldia e simplicidade. Excêntrica simplicidade recusando os latifúndios culturais das modernas teorias da linguagem. Linguagem de massas circunstanciando a dicção de uma lírica de três mil anos.
A vida é um caminho
Reclamo a minha estrada
O reencontro comigo!(Daspet,20,2002)....
Retomando João Ribeiro em Páginas de Estética, números 45 e 63 numa reflexão de A.M.Teixeira....o aspecto essencial da beleza é não ser intelectualmente
compreendida e não conter um só elemento de inteligência ou razão. Pode ser explicada: podem-se perscrutar as leis secretas que a regem como todas as coisas; mas sentí-la não é matéria da ciência(...)A obra de arte precisa 'conviver' e 'con-criar' conosco. Para que haja mistério na obra literária ou plástica é mister que haja incompreensão, mas sem obscuridade; que a alma que as escute ou as sinta se embeveça e continue a cismar o sonho do poeta.....Cada um se perfaz e completa a sua impressão própria e pessoal. A verdadeira obra de arte é mais um estímulo....do que idéia.
Esta Lua que se recusa, tanto à obscuridade quanto à Luz plena se me afigura o lugar provocador da linguagem poética que se recusa à estabelecer-se, levando a produção de sentidos a migrar, junto com aquele que lê, tanto à possibilidade de criação quanto à de recriação.
Inscreve-se assim nesta poesia, a possibilidade permanente da rediscussão da estabilidade que nos impressiona nas teorias contemporâneas da linguagem poética. Não se trata aqui do experimentalismo formalista ou estruturalista nem tão pouco das modernas posturas das poetisas contemporâneas diante da nossa eterna condição humana. Simplesmente a serena postura de alguém diante da Lua, se desligando do mundo com todas as suas linguagens, sedução e formas de autoridade.
Rebeldia total. Esta recusa ao mundo através da contemplação da lua. Me parece o corte epistemológico que nega dialeticamente a identificação narcísica com a autoridade como poder. E consequentemente as formas de identificação que legitimam a tirania do discurso oficial,de qualquer poder hegemônico. Bhabha nos diz:
Não passará a linguagem da teoria de mais um estratagema da elite ocidental culturalmente privilegiada para produzir um discurso do Outro que reforça a sua própria equação de conhecimento e poder....(Bhabha,1998:45)
Não passará a linguagem da teoria de mais um estratagema da elite ocidental culturalmente privilegiada para produzir um discurso do Outro que reforça a sua própria equação de conhecimento e poder....(Bhabha,1998:45)
Pensando na poesia de Delasnieve como quem frui um fenômeno de dicção que é parte da diáspora pós colonial (antes do 11 de setembro) é interessante
associar visões de lírica de três mil anos atrás com a contemporaneidade.
A simplicidade desta linguagem me remete à comunicabilidade midiática, à lírica de todos os tempos, ao que parece banal e é complexo. Se pensarmos que, em termos de lírica trovadoresca, passando por Camões(Lírica), que usa o modus operandi da redondilha, essencialmente popular, talvez tenhamos uma pista para compreender esta junção entre comunicabilidade imediata e complexidade, uma vez que a também aparente simplicidade de Safo atravessou três mil anos.
Se Benjamim (Magia e Técnica,Arte e Política) nos diz que a lírica, bem como toda a poesia, nos diz que a arte não é reprodutível em série, penso ser perfeitamente possível dizer que o formato, a forma linguageira, pode ser reprodutível, os sentidos produzidos certamente não.
Vivemos dentro de uma estrutura de linguagem aristotélica, conceitual, estruturada sobre o verbo ser que funciona como um princípio de autoridade que legitima ou não alguém . Os marxistas questionam isto o tempo todo. A dialética também e a poesia de Delasnieve me lembra muito Safo no momento (e este verso de três linhas atravessou três mil anos). Ela se posiciona diante da sua Lua como se desconhecese o barulho do mundo. Apesar de ser uma autoridade legal não parece buscar nenhuma forma de legitimação por um princípio de autoridade, seja teórica, seja epistemológica (teorias contemporâneas sobre o fazer poético)Isto é muito revolucionário e fui precebendo que é uma poesia belíssimas.
Lembro que a liberdade é a única forma de servir à humanidade como artista.
Em termos de Delasnieve, quanto de todos os líricos, advogo a possibilidade de estarmos diante do que Adorno, Herbert Head chamam de objeto único.
Irredutível senão aos seus próprios termos .
Misterioso e belo na sua intraduzível simplicidade.
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Helenice Maria Reis Rocha -Perfil
- Possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (1997) e mestrado em LETRAS: ESTUDOS LITERÁRIOS pela Faculdade de Letras (2000); Título: Sinais de Oralidade:A Transfiguração da Voz em Cobra Norato, Ano de Obtenção: 2000.;atuando principalmente no seguinte tema: Amazônia, Vida.Especialista em Música, área de Concentração: Educação Musical.Crítica.
- De Belo Horizonte -MG - Brasil
- helenice@task.com.br .
- O presente ensaio será apresentado pela autora junto a ABRALIC - ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE LITERATURA COMPARADA. Produção em C,T & A Textos em jornais de notícias/revistas 1. ROCHA, H. M. R. . As Marcas da Alteridade em Cobra Norato. Revista da Pós-Graduação em Letras da UFPA, Belém, p. 95 - 102, 10 jun. 2006. Trabalhos completos publicados em anais de congressos 1. ROCHA, H. M. R. . As Veredas da Palavra: uma tautologia do sertão. In: Encontro Regional da ABRALIC, 2005, Rio de Janeiro. As Veredas da Palavra: uma tautologia do sertão, 2005. 2. ROCHA, H. M. R. . Os Arquétipos Femininos na Poesia de Ana Miranda. In: XI Seminário Nacional Mulher e Literatura II Seminário Internacional Mulher e Literatura ANPOLL, 2005, Rio de Janeiro. Os Arquétipos Femininos na Poesia de Ana Miranda, 2005. 3. ROCHA, H. M. R. . Comunicação Riobaldo Tatarana entre o Ser e o Nada. In: III Seminário Internacional Guimarães Rosa, 2004, Belo Horizonte. Comunicação Riobaldo Tatarana entre o Ser e o Nada, 2004. Apresentações de Trabalho 1. ROCHA, H. M. R. . 8º Salão Minastenista de Pintura. 2004. (Apresentação de Trabalho/Comunicação). 2. ROCHA, H. M. R. . 1ª Exposição Minas Tênis. 1991. (Apresentação de Trabalho/Comunicação). Produção artística/cultural 1. ROCHA, H. M. R. . Sinfonia dos Elementais. 2004. (Apresentação de obra artística/Musical). 2 ROCHA, H. M. R. . Cameratinha Dissonante para Cordas. 2005 (Musical).
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