quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Clóvis Campêlo

UMA NOITE, UM GATO

Nietzsche. Foi assim que resolvi chamá-lo. Era um gato preto, completamente preto, que deu de me aparecer no muro do quintal, toda noite.
Vinha, comia o que eu lhe oferecia e se ia, sem mais nem menos. Independente, como todos os gatos.
Uma noite, veio e ficou. Talvez tenha se dado conta de que ali a comida seria farta e o ambiente acolhedor.
Confesso que de início pensei em lhe chamar de Mefistófeles, não só pelo susto que me deu no nosso primeiro encontro, negro dentro do escuro da noite, realçando apenas o brilho claro dos seus olhos, como também pela sua preferência noturna, fugindo sempre da luz do dia. Mefistófeles seria, assim, aquele que prefere a noite e que não ama a luz do dia.
A nossa convivência, porém, mostrou-me que de noturno e soturno ele nada tinha. Além dos ratos, nunca se preocupou em caçar nenhuma outra alma inocente.
Muito pelo contrário, era um gato afável e de bom relacionamento. Logo fez amizade com dois gatos que habitavam a casa vizinha, Heráclito e Empédocles. Não me pergunte, porém, o por que destes nomes. Talvez o meu vizinho, homem de bigodes fartos e respeitáveis, perambulasse pelos estudos filosóficos, pelos pilares do pensamento grego antigo, do pensamento pré-socrático. Tudo é possível, nesse mundo de Deus e do tinhoso.
Heráclito era um gato ainda jovem, de cor amarela, mariscado, arisco e desconfiado conosco, os humanos. Com Nietzsche, no entanto, deu-se bem. Gostava de vê-los caminhando juntos, no telhado, ao final da tarde ou simplesmente tomando banho de sol, lado a lado, na calçada, pela manhã.
Empédocles era mais velho e mais gordo. Também era mariscado e com matizes que variavam do preto ao cinza. Nunca se envolvia nas arruaças dos gatos vadios. Sempre estava equidistante e equilibrado. Confesso que também nunca o vi sobre os telhados em busca das fêmeas no cio. Era um gato meio estranho e reservado. Mas, relacionava-se bem com Nietzsche e isso, para mim, bastava.
Essa amizade heterogênea e inconsistente, entretanto, pouco durou. Uma noite, do mesmo modo como chegara, Nietzsche se foi. Depois de jantar sardinhas com arroz (sempre se recusara a experimentar a ração felina que eu comprara, induzido pela propaganda televisiva), bebeu um pouco de água, miou um miado qualquer e lançou-se sobre o muro para o que eu imaginava como sendo apenas mais um passeio noturno.
Foi a última vez que o vi.

Clóvis Campêlo
Recife, 2010
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