quarta-feira, 17 de outubro de 2012

MEMBRO: MARLI SILVEIRA

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MARLI SILVEIRA
É graduada em História (Unisc) e mestre Filosofia (UFSM). Publicou diversos livros de poesia e participou de coletâneas poéticas no Estado e Brasil. Pela Edunisc lançou três livros, O Pêndulo da Angústia (Filosofia), Dupla Poesia e Transversos. Foi Secretária de Cultura em Vera Cruz/RS e atualmente é Coordenadora de Cultura em Santa Cruz do Sul/RS. Integra a Casa do Poeta Riograndese, o Instituto Cultural Português. Membro correspondente da Casa da Poeta Latino-Americano-CAPOLAT. Recebeu muitos prêmios pela sua trajetória literária e pelo seu trabalho cultural, sendo reconhecida como uma das lideranças mais atuantes no cenário local, regional e estadual no tema cultura. Reside em Santa Cruz do Sil - RS. E-mail:marli.cultura@santacruz.rs.gov.br
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Humanidade
O homem é um ser visitante
o andante que não se separa
de suas certezas
o trôpego que cala
quando sente medo
o animal que mata
quando sente fome
Apenas
Falar da vida é dizê-la
sem que no fundo seja dita
é acorrer ao destino para explicar
e o próprio destino cala
para torná-la vida

Circunstâncias

Cresci ouvindo meu pai dizer que eu seria muito grande, talvez o maior homem do mundo
Que quando eu crescesse todos ficariam maravilhados com as coisas que eu iria criar
Minha mãe, bom, minha mãe não falava muito sobre o futuro, sua vida foi tão dura que ela preferia falar do dia-a-dia
Mas meu pai não, para ele as coisas eram possíveis, os sonhos poderiam se concretizar
Um dia ele acordou tão entusiasmado comigo que achou que já poderia ganhar a vida cantando
Bom, eu na verdade só sabia dedilhar as primeiras notas em um velho violão que meu pai achou no lixo
Para ele era o suficiente e logo tratou de me levar para mostrar meu talento musical
Encabulado mas sem coragem de negar ao meu pai o seu sonho que no fundo era dele
Arrisquei algumas notas
Comovidas com meu tamanho, tinha sete anos, as pessoas até tentaram prestar atenção
Meu velho pai ria e chorava, seus olhos marejados pareciam tocar o céu
Era como se ele estivesse diante de Deus dando graças por algo alcançado
Tocava e olhava meu pai, não, dizia baixinho pra mim, não, o maior homem do mundo é meu pai
Ele sim é de verdade e não teve alguém que o levasse para viver seus sonhos
A manhã passou e voltamos para casa
Não tinha almoço, pois o desemprego pegou minha família de jeito
Mas como sempre, minha adorada mãe havia catado alguns tostões pela rua vendendo doces que ela mesma fazia
Eu sabia que minha mãe não abandonava nossa casa porque nos amava, do seu jeito, mas nos amava
Meu pai contou para ela o sucesso que havíamos feito, mas ficou calada
Sei que minha mãe sonha com uma vida melhor, mas preferiu ao longo dos anos viver os sonhos de meu pai, sonhos que não vão se concretizar,
Mas o simples fato de ele ficar feliz e fazer os outros felizes tem sido o suficiente para nós
A vida foi acontecendo deste jeito e todos os dias meu pai inventava uma maneira de contar o mundo a partir dos seus olhos, olhos carregados de amor
Um dia ele cismou que eu iria aparecer em um programa de tv
Procurou um conhecido importante na nossa cidade e falou dos seus desejos
O conhecido disse que ele era louco e que pobre não tinha vez
Que ele devia deixar de ser um maluco e trabalhar para sustentar sua família
Meu pai não suportou aquelas palavras e passou o resto de sua vida vendendo doces pelas ruas e rodoviárias
Até que um dia ele entrou em um ônibus e foi embora
Um mês depois tivemos a notícia de que ele havia morrido após de ter caído de uma antena de tv
Cresci, trabalho e ganho minha vida
Minha velha mãe continua comigo e resolveu esquecer tudo, não fala do passado
Eu penso todos os dias no meu pai e acho que ele foi um vencedor
Só um vencedor acredita nos sonhos e luta por eles
Sou, hoje, um grande homem
Mas meu pai sim foi o maior homem do mundo


Perfil

A velhice não me incomoda
os cabelos brancos
as rugas no rosto
a pressa em desfazer-me de tudo
a ânsia de engolir a vida
consumir a causa mesma da morte
A existência, com seus lampejos de dor
angústia depositária de sentido
devora minha finita compreensão
ruptura do que quero
e posso ser em verdade



Único verso

Compor um único verso
sem entrelinhas
capaz de suportar toda poesia
sem a simplificar
Arrancar de cada sílaba
sua expressão mais pulsante
que em uma palavra
frases tivessem sido ditas
Compor o desalento, a paixão
a ignorância e o desejo
cantar o amor
chorar a dor da estrela partida
contemplar as formas, o tom
criar a alma
Em um único verso
mesmo sem métrica
mesmo sem rima
uma ânsia suprema, envaidecida
sido compilada, amada, existido
Ouvir a melodia dos sons
sussurrar a eterna finitude
e quando a poesia de um verso só
já não poder ser tocada
calar a certeza de não tê-la criado

Corda Bamba

Durante anos faço a mesma pergunta
quanto de nós está em cima do muro
quantos de nós permanecem atávicos
amaldiçoando a preferência
Não é mais possível legitimar a cegueira
esses olhos intolerantes às demandas alheias
ou os outros nos seduzem
ou o muro será a nossa condenação


Crepúsculo

A lua veio despedir-se de mim
Parecia não querer ir embora
Mas a sua demora esqueceu de ficar
O dia roubou o desejo da noite
E a lua, como faz quase todos os dias,
Voltou a acordar
Por que não é eterno o seu luar
Talvez seja porque os anjos insistem em fazer dormir
Aquela a quem faz apaixonar



Factual

Quando olho para um menino pobre
Não desconfio do seu destino
Vejo um guerreiro sem espada e escudeiros
Uma criança querendo brincar de esconde-esconde
Quando olho para um menino pobre
Correndo pelas ruelas imundas do Brasil sem cara
Vejo milhares de crianças unidas pelo desejo inabsorvível
De sonhar com um lugar no banco da praça
São só crianças, nada mais
São apenas meninos e meninas
Que teimam acreditar
Sofrem sim, crescem sim,
Mas sob nossos olhares


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